Ensaio Sobre um País Plano
A tua exposição chama-se “Ensaio
Sobre Um País Plano” e baseia-se na novela "Flatland: A Romance Of Many Dimenstions",
do escritor e erudito inglês de finais do séc XIX, Edwin Abbott Abbott. Porquê
o interesse neste livro?
Li este
livro há muitos anos, quando era adolescente, e reli-o mais recentemente. E
nesta releitura, despertou-me a atenção a descrição deste mundo plano, feita
pelo personagem principal, que é um Quadrado. Edwin Abbott Abbott imagina uma
aventura matemática passada num país plano e povoado por figuras geométricas
regulares e irregulares, que viviam, pensavam e comunicavam. O Quadrado
descreve-nos o modo como eles se percepcionam uns aos outros, como se organizam
em sociedade e como habitam aquele espaço. À medida que eu ia lendo, ia imaginando
todo aquele mundo como uma grande pintura “viva”, que se perpetuava no tempo.
Interessa-me,
neste livro, a descrição deste país, que ocupa toda a primeira parte, e que nos
conta a história daqueles habitantes e as leis pelas quais se regem. Esta pequena
história da Flatland despertou-me a ideia de poder adaptar, de algum modo, as
ilustrações que Abbott desenhou para este livro, comparando-as a diversas
pinturas modernistas e geométricas. Este exercício levou-me a “fundir” dois
espaços/países planos, o da Flatland de Abbott com o espaço pictórico
geométrico/modernista (no sentido mais lato e abstracto), que mais tarde me
levou ao Suprematismo criado por Kasimir Malevich.
Este livro pode ter
sido o precedente para o que mais tarde foram as vanguardas russas?
Particularmente as ideias estéticas do suprematismo. Malevich terá tido
conhecimento deste livro? Ou será mais uma coincidência de 2 factos díspares?
Sendo a tua proposta mais um exercício de cruzamento de narrativas ao qual tu
enquanto autor te dás a liberdade de ensaiar.
Abbott não era vanguardista, era professor de Teologia em
finais do séc. XIX, e também um estudioso de matemática. Não sei dizer se
Malevich tenha alguma vez lido este livro mas não ficaria surpreendido se o
tivesse. Ambos foram estudiosos sobre o tema da quarta dimensão e da noção de
espaço não euclidiano, que foi intensamente estudado pelos cubistas e que
alterou o espaço pictórico na pintura modernista do séc. XX. Em Flatland o
debate matemático entre o Quadrado e a Esfera, que lhe mostra a terceira
dimensão espacial, debruça-se muito sobre a ideia de que existe uma quarta
dimensão ou mais outras que poderão existir. A superfície da Flatland é
atravessada pela Esfera que interage com Quadrado e o leva a conhecer a
terceira dimensão. “Para cima não para Norte” é frase que o Quadrado, a dada
altura profere, para não se esquecer da terceira dimensão. O leitor de Flatland
deverá reconhecer uma analogia que está implícita sobre a sua condição de ser a
três dimensões que pode conceber uma quarta que o transcende.
Uma ideia muito parecida é nos dada pelo filósofo russo P.
D. Ouspensky , com o seu livro A Quarta Dimensão (1909), estudado por
Malevich e Guillaume Apollinaire e muitos outros futuristas e cubistas, em que
refere esta última como dimensão espacial física que existe a par da terceira,
assim como a terceira também está para a segunda. Cada um de nós não se pode
limitar a aceitar o espaço tridimensional postulado por Euclides por que é
incompleto. Existe uma “Intuição mais alta” que nos permite pensar e imaginar o
espaço não euclidiano, uma consciência cósmica que se pode manifestar como pura
emoção. Emoção que se pode prestar a um estado religioso ou à criação artística
e criativa. Malevich tenta aplicar estas ideias ainda na sua fase
cubo-futurista, em 1913, quando desenhou a cenografia e o guarda-roupa da opera
futurista intitulada Victória Sobre o Sol, organizada pelo grupo Soyuz
Molodyozhi. A ópera assentava sobre esta ideia de “Intuição mais alta” ser um
veículo para a criação da uma nova linguagem (Zaum), uma linguagem do futuro,
que saía fora dos limites positivistas e racionais para a contemplação da
quarta dimensão. Os actores usavam factos com formas geométricas que
mergulhavam numa luz de palco intensa, paralelo que faço agora aqui com os
habitantes da Flatland, em jeito de curiosidade. Foi nesta peça que Malevich
concebeu o seu Quadrado Negro, origem do Suprematismo.
Para mim fez todo o sentido justapor, estes dois mundos:
Flatland e Suprematismo. Ambos são quase contemporâneos, cerca de trinta anos
um do outro (1884-1913/15). Ambos têm regras muito próprias e também partilham,
como não podia deixar de ser, a sua natureza plana e esse plano é o território
físico da pintura, a planura que determina a identidade da pintura
modernista, e o seu médium, como foi descrito por Clement Greenberg.
O plano branco e infinito é o pano de fundo nos dois. Formas geométricas que
coexistem no vazio. A personagem principal da Flatland é um quadrado que narra
a estória. Malevich assumiu o Quadrado-Negro como o seu alter-ego. A hipótese
que eu coloquei, quando iniciei este projecto foi: não poderão estes dois
quadrados coexistir, um dia, no mesmo plano?
E concretamente, de
que forma vais materializar essa justaposição que referes no espaço do next
room?
Concretamente vou mostrar no Nextroom uma parte deste projecto mais referente à relação entre este livro e o suprematismo. Esta serie de trabalhos ainda está em progresso e tem também uma relação mais alargada com a pintura abstracta e geométrica. Apresentarei um conjunto de desenhos e pinturas em papel, baseados tanto nas ilustrações de Abbott, como nas composições suprematistas de Malevich, uma pintura de canto intitulada Pentágono Negro, baseado no quadrado negro de Malevich e uma escultura/maquete baseada num dos Architectons de Malevich.
As criaturas geométricas, descritas por Abbott, dividem-se
em seres (polígonos) regulares e irregulares. Existe uma lei da sua biologia
que faz com que um filho de um ser regular tenha sempre mais um lado que o seu
progenitor. Se o Quadrado Negro (Malevich) vivesse na Flatland e se tivesse um
filho, este assumiria a forma de um pentágono negro. A forma pentagonal
encontra-se, nesta exposição, muito evidenciada por este facto, e também pelas
casas na Flatland terem formas pentagonais. As casas em forma de pentágono,
neste mundo, têm a vantagem de oferecer mais segurança aos habitantes por terem
ângulos pouco contundentes, e não haver tanto perigo de morte quando qualquer
habitante entre em contacto físico com as suas paredes. Edifícios com formas
triangulares ou quadradas são mais raros e costumam servir como fortificações
militares. Porque o Quadrado Negro também é o princípio da arquitectura do
suprematismo, eu resolvi acrescentar-lhe mais um lado, para o aproximar (quer
semanticamente, quer simbolicamente) à realidade e ao mito da Flatland.
Com os personagens alegóricos do seu
romance, Abbott acaba por fazer um retrato metafórico da sociedade da sua época
e das suas dinâmicas. O escritor acaba por nos devolver uma imagem da
cultura vitoriana fortemente estratificada, machista com
desigualdades sociais fortes. Abbott, na Inglaterra da segunda metade do séc.
XIX, vive o início do Liberalismo, a época da implementação das grandes
companhias de capitais, do livre mercado, da exploração dos recursos
naturais, etc. Simultaneamente, a sociedade é
extremamente conservadora, com um conjunto de códigos, moralismos e
preconceitos puritanos. Ao trazeres para a actualidade
esta obra literária, pretendes de alguma forma fazer um comentário
crítico à época histórica muito particular que vivemos?
Interessa-te estabelecer este paralelismo?
Acho que
esse paralelismo é sempre possível. A sátira que Abbott constrói põe a nu os
preconceitos e os moralismos da sociedade inglesa da segunda metade do séc.
XIX, principalmente no que concerne ao estatuto da mulher e às desigualdades
entre classes sociais. Não será nada de novo afirmar que estes problemas ainda
subsistem hoje em dia, com as devidas diferenças, e que vale sempre a pena
reflectir sobre eles. A sociedade descrita na Flatland é uma sociedade que vive
num regime absolutista e totalitário, governada pelo clero. Os Círculos são
sacerdotes, o topo da hierarquia social. Os polígonos regulares representam a
classe mais abastada, adquirindo mais importância quanto maior for o número de
lados iguais que possuem, sendo o triângulo equilátero o mais humilde de todos.
Os Irregulares fazem parte das classes mais baixas: os servos/escravos,
soldados, marginais e renegados, que assumem a forma de triângulos isósceles,
ou de outros, com quaisquer outras formas que não tenham lados iguais. O
Quadrado fala-nos de tempos em que os Irregulares derrubaram regimes
implantados pelos Regulares e de inúmeras batalhas revolucionárias, mas terá sido
o regime destes últimos que vigorou mais tempo. No ponto mais baixo da
hierarquia está a mulher, que tem a forma de um segmento de recta, sendo esta
incapaz de pouco mais do que conceber e cuidar dos filhos e respectivos
maridos. Abbott era professor e muito crítico acerca do modo como o ensino, no
seu tempo, desqualificava as mulheres e dedicou um capítulo inteiro deste
romance a descrever a condição feminina na Flatland.
O regime liderado pelos Círculos era um sistema ditatorial que fazia vigorar uma ordem austera, privilegiando os Regulares em detrimento dos Irregulares e perseguindo aqueles que anunciavam a existências das 3 dimensões. A personagem principal deste romance, o Quadrado, que após ter descoberto o mundo a três dimensões tentou comunicar aos seus compatriotas planos que existia mais uma dimensão para além das que lhes era permitido percepcionar, foi preso e abandonado por isso. Dizer que havia mais uma dimensão espacial - “Para cima não para norte” - era subversivo e susceptível de punição pelo regime. Malevich também foi vítima de coacção pelo regime soviético de Estalin. Viu-se na contingência de ter de renunciar aos princípios suprematistas e à revolução na qual ele participou activamente e em diversas frentes. É curioso que as sociedades de cada um destes quadrados têm também aspectos similares, pelos princípios austeros e pelos dogmas impostos.
O regime liderado pelos Círculos era um sistema ditatorial que fazia vigorar uma ordem austera, privilegiando os Regulares em detrimento dos Irregulares e perseguindo aqueles que anunciavam a existências das 3 dimensões. A personagem principal deste romance, o Quadrado, que após ter descoberto o mundo a três dimensões tentou comunicar aos seus compatriotas planos que existia mais uma dimensão para além das que lhes era permitido percepcionar, foi preso e abandonado por isso. Dizer que havia mais uma dimensão espacial - “Para cima não para norte” - era subversivo e susceptível de punição pelo regime. Malevich também foi vítima de coacção pelo regime soviético de Estalin. Viu-se na contingência de ter de renunciar aos princípios suprematistas e à revolução na qual ele participou activamente e em diversas frentes. É curioso que as sociedades de cada um destes quadrados têm também aspectos similares, pelos princípios austeros e pelos dogmas impostos.
Na história que
descreves há alguma semelhança com a alegoria da caverna do Platão? Em ambas as
histórias os seres desconhecem o mundo para além do qual vivem onde a realidade
vem de um conjunto de representações (imagens) que confundem com a realidade….
Relativamente
ao romance de Abbott eu diria que sim. A ascensão que o Quadrado leva a cabo ao
mundo da terceira dimensão, proporcionado pela Esfera tem semelhanças com a
alegoria da caverna de Platão. O diálogo que se estabelece entre o Quadrado e a
Esfera é, em parte, semelhante à maiêutica platónica. O Quadrado, tal como o
prisioneiro da caverna, liberta-se das limitações que sempre condicionaram a
sua percepção da realidade e atinge um conhecimento cosmológico sem paralelo
com o dos seus conterrâneos. Abandona a ignorância que lhe estava inerente à
sua condição de habitante de um país a duas dimensões e atinge um estado
superior de conhecimento. Em ambos está implicada uma ascensão a um mundo
superior, um mundo inteligível, onde se atinge uma percepção mais alargada e
completa da verdade. Sócrates, perante Glauco, constrói uma metáfora da obtenção
do conhecimento ̶ da consciência ̶ o domínio das ideias (diánoia e
noésis) que estão no topo desta ascensão. Especulando um pouco, diria que
Ouspensky terá herdado, em parte, esta ideia platónica de ascensão para uma
maior consciência, procurando explicar e entender o mundo da quarta dimensão e
Malevich terá também querido, com o seu sistema suprematista, ascender a um
mundo superior. A maiêutica platónica poderá ter estado, ainda que
indirectamente, presente no despoletar das vanguardas modernistas. Este é mais
um dos pontos de contacto, embora não seja logo à partida visível nos trabalhos
expostos nesta mostra, que se podem estabelecer entre estes dois mundos.
Quando regressa à Flatland, o Quadrado tenta,
em vão, ensinar aos seus compatriotas a terceira dimensão e é preso. O
prisioneiro quando retorna à caverna também será, segundo Socrátes, mal
recebido e marginalizado pelos seus conterrâneos, Malevich também se viu
obrigado a renunciar às ideias suprematistas quando o regime soviético mudou de
rumo político. A referência a Platão pode estabelecer aqui um fio condutor
interpretativo interessante quanto à narrativa e ao destino destes personagens.
O quadrado negro de Malevich coloca
um ponto final na função narrativa da Pintura. É o que é: um quadrado negro
sobre fundo branco. Quando colocas o quadrado negro a habitar o mundo imaginado
por Abbott, desta vez como pentágono, dás-lhe, de certa forma, um sentido. O
quadrado funciona como um personagem que desempenha um papel. Poderemos falar
numa deslocação da carga simbólica, quase como se ensaiasses uma nova alegoria
a partir da história da arte? Se sim, essa deslocação vai em que sentido? É uma
tentativa de implosão do edifício suprematista desde dentro, ou antes de ensaiar
uma hipótese de desenvolvimento contemporâneo dos ideais
modernistas/suprematistas? Ou nem uma nem outra?
O Quadrado
Negro é o lugar zero da forma para Malevich. Este “zero” foi o princípio
fundador de uma narrativa muito própria que foi o Suprematismo. A substância
deste “zero”, deste quadrado primordial, foi a matéria-prima de todas as formas
que Malevich compôs daí em diante. Uma crise que afectou o próprio Malevich e o
colocou no meio deste abismo sem fundo. A abolição da pintura como
representação, como representação sem referente. Representação e referente
estão no mesmo patamar. Qualquer coisa que remete para o plano da imanência à
natureza, segundo José Gil, surge no Quadrado Negro. Um buraco negro que
absorve todas as formas da natureza. Que representa e que não representa.
Malevich, ele próprio, parecia não entender completamente o que era, de facto,
o Quadrado Negro.
O ponto de
partida de uma linguagem que nasce a partir de uma oscilação entre pintura e
não-pintura. Um fluxo que transforma, semanticamente, este Quadrado Negro: ele
começa por ser o elemento fundador do Suprematismo que absorve toda a natureza,
depois passa a ser mais um elemento plástico desde sistema, uma forma plana, mais
tarde o próprio Quadrado torna-se quase um alter-ego de Malevich. Ou seja, o
Quadrado Negro foi-se transformando. O gesto que aqui quero levar a cabo é mais
uma transformação deste quadrado. Interessa-me tornar a abstracção em algo
figurativo, num processo que antagoniza o gesto do próprio Malevich. A
abstracção transforma-se, também aqui, num referente, a partir do qual eu criei
um conjunto de representações, uma especulação que seguiu uma lógica muito
própria e particular.
Eu não
pretendo destruir o Suprematismo nem as ideias do Malevich, pretendo pensar
sobre elas e colocar hipóteses. Estas hipóteses apontam, fundamentalmente, para
uma perspectiva diferente da história da arte. Também não pretendo fazer
história de arte, nem isto é um ensaio académico sobre a questão. O meu
objectivo é pensar sobre a história de arte a partir de um gesto poético e
materializar pontos de contacto que encontrei sobre estes dois mundos e
construir outra coisa que transcende ambos. Está quase a fazer 100 anos sobre o
aparecimento do Suprematismo e é, para mim, importante repensar sobre este acto
pioneiro de Malevich e, de certo modo, prestar-lhe homenagem.
As ideias que desenvolves nesta exposição e que me parece
terem sido iniciadas antes vão ter algum desenvolvimento no futuro? Ou a
Configuração do Next Room coloca um ponto final neste projecto?
A Configuração do
Next Room é o segundo momento deste projecto, que teve o seu aparecimento em
2010, com uma serie de interrupções pelo meio, teve o seu primeiro momento na residência
que fiz no Chateau de Servières em Marselha e ainda está em progresso. Assim
que houver oportunidade haverá um momento final, que abarcará um conjunto mais
alargado de trabalhos que ainda estão em fase de concretização. Trata-se de um
projecto que, de certa maneira, representou uma viragem no meu percurso
artístico e que foi importante na abordagem que tenho procurado fazer sobre o
espaço, a pintura e a arquitectura. A questão do suprematismo e da sua relação
com a Flatland é apenas uma parte de um todo que se debruça, antes mais, sobre
a história da pintura modernista geométrica, que vai mais além do trabalho
pioneiro de Malevich.
Nuno Rodrigues de Sousa (1977)
Vive e trabalha em Lisboa.
Estudou Artes Plásticas/Pintura na F.B.A.U.L. e é
mestre em Ciências da Comunicação/ Comunicação e Artes pela F.C.S.H.U.N.L.
Expõe regularmente desde 2002. Das mais recentes
exposições individuais incluem-se: Desde as fundações em Direcção ao Céu,
Galeria Quadrum, Lisboa (2014), Aberta em par está a porta, Round the
Corner/Teatro da Trindade, Lisboa (2011). Das residências artísticas
destacam-se as seguintes: Intercâmbio Lisboa/Budapeste (2013) e Chateau de
Servieres em Marselha (2012).
Colabora ocasionalmente com Isabel Brison, tendo
organizado com ela os projectos Daqui não se vê bem (2011) e Paper Architecture
(2009).
Das mais recentes exposições colectivas
incluem-se: Screen City Festival in
Stavanger/Sandnes, Noruega (2013), Artists in Residence at Klauzál Square - 1989-2013,
Budapeste (2013), Superfície/Obstáculo, Residências COOP, Lisboa
(2013), O que passou continua a mudar, Plataforma Revolver, Lisboa (2011), Video
in Progress 3: Fields of the Performative’, Cultural
& Educational Centre - Vortex, Escópia (2010), Prémio EDP Novos Artistas,
Museu da Electricidade, Lisboa (2009)
http://nunorodriguesdesousa.blogspot.pt/